Pro Ecclesia ou Pro Rege? (Parte I)

Em 1910, Abraham Kuyper descreveria, na apresentação da sua obra “Pro Rege”1, uma defesa da busca por reunir os cristãos separados em matrizes históricas e denominacionais para combater a “infidelidade e a revolução”, retomando a ênfase no senhorio de Cristo sobre toda a vida. O termo Pro Rege, em terminologia latina, traduz o engajamento com a causa do Rei e, já no texto de Kuyper, traduz a necessidade de reconhecer que o reinado de Cristo, emanada do seu reinado entre seu povo – a Igreja – deve ser a poderosa força que governa toda a vida do cristão, seja nos aspectos individuais, eclesiásticos e civis. 

O problema estava, segundo Kuyper, no “contraste entre a vida da igreja e a vida civil [que] permeou a consciência dos reformados da maneira mais perigosa”. Ou seja, pensar em termos Pro Ecclesia (pela igreja) ou Pro Rege (pelo Rei) – inserindo aqui a minha terminologia –, se tornou um binômio e demandava uma escolha por um ou outro lado. Se Kuyper está correto, não foi apenas o caso de uma distinção negligente, mas uma cisão na definição e uma oposição de duas realidades organicamente ajustadas. Tal cisão amputou o sentido primordial do senhorio de Cristo, resultando em uma mentalidade moderna e distante da compreensão cristã bíblica e confessional. Ou seja: o falso dilema, na mentalidade da igreja moderna, impõe uma falsa opção que será sempre cindida e parcial. O fato é que o movimento de Kuyper e Bavinck preparou o caminho para os seus sucessores, tensionando uma visão Pro Rege. E talvez aqui, fazendo uma breve digressão, possamos levantar a dúvida se o intento inicial de Kuyper, que reconhecia o papel da igreja como central e emanador — uma espécie de força centrípeta –, não se transformou, para muitos dos seus sucessores, em um grande pêndulo: ampliando a cisão e opondo ainda mais os extremos que, por extrapolação posterior, se estabeleceram. 

Antes que alguém suponha, é importante destacar que não me considero um neo-calvinista, apesar da familiaridade e interesse por alguns dos seus escritos e autores. Além de subscrever a Confissão Londrina de 1689, minha direção natural é para os estudos clássicos sobre o conceito da doutrina dos Dois Reinos na tradição cristã, seja em Agostinho, na Reforma e Pós-Reforma (considerando Lutero, Calvino, Turretin e outros), que apontam para uma percepção distinta do modelo transformacional. É também sobre este mesmo prisma que vejo com bons olhos a proposta de VanDrunen, quando afirma que tanto Kuyper quanto Bavinck se alinham, em termos fundamentais, com a tradição clássica. Para VanDrunen, ambos apresentam Cristo – ecoando Turretin – em seu caráter duplo de mediador da criação e mediador da redenção2, ao desenvolver e aprofundar os conceitos de graça comum e especial. De modo geral, o que basicamente proponho, enxerga positivamente tal leitura e segue com alguma proximidade seu raciocínio. Excetuo aqui uma compreensão tensiva, que considero absolutamente necessária para que haja um “bom termo” nessa empreitada de resgate e reavivamento da visão clássica da Teologia dos Dois Reinos, e retornarei a ela ao final desta série de artigos. 

A questão principal envolve, para este texto, não assumir o movimento pendular e “fazer essas coisas e não omitir aquelas” (Mateus 23:23). E o seu principal motif é sinalizar breves contornos e rearticular a fé cristã em sua esfera comum e especial, reconhecendo distinções sem torná-las um dilema. Meu papel é também reforçar que uma perspectiva do duplo reinado de Cristo não significa rejeitar transformação e influência social positiva, mas observá-los de uma maneira distinta, desfazendo as caricaturas comuns, como já reconhecem alguns dos críticos no campo transformacional3

Por último, não será possível resumir, menos ainda resolver, todas as questões que têm sido tratadas em debates mais amplos, por livros ou artigos, ao longo da última década4. Basicamente gostaria de esboçar três vias importantes, que trazem temas centrais da tradição cristã como eixos basilares para uma afirmação extra muros da nossa fé.

1. A teologia própria e a realidade subjacente

Nas palavras de Craig Carter, o cuidado com a teologia retrocede ao próprio Deus5. A primazia do estudo de Deus determina a vitalidade e saúde de todo o resto. Os antigos pais da igreja distinguiam theologia como o estudo das relações ad intra, e como economia o estudo das relações trinitárias ad extra. Dizendo de outra maneira, teologia é o estudo de Deus em si mesmo e em relação a todas as outras coisas. Indo além da contemplação que emerge do labor teológico, meu foco aqui recai em “todas as outras coisas” em relação a Deus considerando o discurso público. Sege-se que uma metafísica se apresenta necessariamente e com implicações também absolutamente necessárias. De modo ainda mais simples, quero afirmar que a teologia própria cristã implica em afirmações sobre uma realidade subjacente, e isso invariavelmente significa discurso público, pois este é o significado adaptado para “todas as coisas”. Considere apenas dois exemplos, e poderiam ser muitos, que são suficientemente claros para ilustrar este ponto. 

Peter Leithart, na revista First Things, traça um perfil biográfico e teológico de Sergei Bulgakov6 e situa a importância da relação da teologia trinitária com os seus desenvolvimentos teóricos posteriores. Bulgakov permanece controverso até hoje, e não é  preciso abraçar toda a sua obra, especialmente sua “sophiologia”, para reconhecer algumas de suas contribuições importantes. E ainda que alguém rechace o grau especulativo e certas conclusões dele, é importante notar, conforme a apresentação de Leithart, que o flerte com o marxismo na juventude foi destituído e deu lugar a uma miríade de escritos sobre todas as áreas da vida humana a partir de um fundamento ontológico-trinitário. Todos os potenciais insights e os exageros da contribuição pública de Bulgakov podem ser vislumbrados de um modo positivo e também crítico no artigo de Leithart. O que permanece é que sua teologia trinitária implicou em um vasto discurso público. 

Outro exemplo, mais antigo e familiar na história é o de Atanásio de Alexandria, pai da igreja e um titã da teologia trinitária. Para os mais familiarizados, a frase Athanasius Contra Mundum é significativa para a importância da preservação do dogma para os cristãos. Do outro lado, quase sempre negligenciamos que o intenso debate e toda a perseguição por parte do arianos foi travado no campo político, com tramas sucessivas que significaram três momentos de exílio para o bispo de Alexandria. Atanásio vislumbrava que colocar em risco a definição de Deus significaria colapsar a realidade da igreja e, consequentemente, “todas as demais coisas”. Aqui não só houve discurso pública a partir de teologia própria, mas também uma experiência excruciante de “colocar a pele em jogo”, na arena pública, em nome da fé. 

Em resumo, apesar do discurso público esbarrar em tantos outros campos próprios, permanece um fato que toda a realidade presente é derivada de uma realidade última identificada pelos cristão como Deus Trindade. Não há como engajar-se no campo das ideias sem considerar a primazia de um Deus tripessoal e de tudo o que se segue ao estabelecermos sua relação com todo o resto, segundo a sua revelação. E neste caso, não há uma escolha a ser feita entre dois tipos de discurso, um sobre Deus e outros sobre a realidade subjacente. Ambos são a tarefa teológica do povo de Deus, em algum grau e talvez com finalidades distintas, seja para o teórico cristãos, o membro-leigo e os pastores-teólogos. O grande trabalho está na palavra “relação” que se apresenta entre “Deus” e “todas as coisas”: ela é um convite para refletir sobre implicações da natureza mais básica da nossa fé. E isso nos leva ao segundo ponto, pois as relações ad intra e ad extra do Deus Trinitário se articulam em um segundo tema crucial. 

(Continua na próxima semana…)

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  1. Abraham Kuyper. Pro Rege: Living under Christ’s Kingship. Faço menção aqui a apresentação da tradução inglesa, disponível em domínio público.
  2. VanDrunen, David.Two Kingdoms and Reformed Christianity: Why Recovering an Old Paradigm is Historically Sound, Biblically Grounded, and Practically Useful. In: Pro-rege – Mar-2012. p. 34. Disponível em: <https://digitalcollections.dordt.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1158&context=pro_rege>
  3. “In short, two-kingdoms theology is not opposed to transformation; it simply has a different understanding of transformation. Van Drunen mentions the new creation here. His understanding of this concept plays an important role in his presentation of two kingdoms theology.” Keith Mathison. A Review of David VanDrunen’s Living in God’s Two Kingdoms. Leia mais em: <https://www.ligonier.org/learn/articles/2k-or-not-2k-question-review-david-vandrunens-living-gods-two-kingdoms>
  4. Um panorama crítico amplo é oferecido em The Resurgence of Two Kingdoms Doctrine: A Survey of the Literature por Michael N. Jacobs, disponível em <https://www.thegospelcoalition.org/themelios/article/the-resurgence-of-two-kingdoms-doctrine-a-survey-of-the-literature/>
  5. Craig A. Carter. How Then Shall We Theologize? Disponível em <https://credomag.com/2021/04/how-then-shall-we-theologize/>
  6. https://www.firstthings.com/article/2023/08/seriously-god-is-love
John Doe

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